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O Circo Humano de Mário Vitória

As telas de Mário Vitória parecem cartazes magníficos para o espectáculo da vida. Há nas suas composições essa espectacularidade que se pretende num anúncio que se faça, numa história que se venda, garantindo aventuras incríveis de hilário ou horror, em que homens e bichos se digladiam entre mimos e ataques. Eu vejo sobretudo assim o que este pintor apresenta, porque não há pacificação na condição humana que ele pinta, muito ao contrário, estabelecendo uma crise permanente, intensamente suportada no movimento e sublinhada por ser um exímio ironista, desde logo confesso nos títulos que adopta.

“Para gozar a violação é necessário que a regra seja inviolável”, é o título de uma das telas, onde lapidarmente estabelece com o seu público um acordo de subversão, lidando constantemente com a não correspondência ao expectável e, substancialmente, indo ao encontro de um lado mais negro do humor, abalando preceitos morais e, em última análise, reclamando uma liberdade artística fundamental.

A arte de Mário Vitória é feita de extrapolação e exagero, podendo ser, em face do aspecto delirante que adquire, imagem fiel e algo narrativa de um sonho ou de um pesadelo. É pela combinação das mais diversas figuras e elementos que chega ao resultado visualmente explosivo do seu trabalho. É, talvez, a característica mais imediata do que faz: a explosão. Por vezes, extremamente nítida, existindo um ponto concêntrico de onde tudo parece emanar, e o colorido, como que rasgado em raios, que se intromete entre o desenho, alude a essa dispersão típica do que subitamente produz um abalo.

Na tela “Em todo o caso sempre pela mesma porta” acentua-se o aspecto sempre presente da critica social. É notório que Mário Vitória, por mais exagero, sonho ou explosiva força que contenha, tem do humano uma visão disfórica, incapaz de acreditar no “bom selvagem”. Nesta porta todos entrarão, talvez ingenuamente, para uma uniformização socialmente esperada, volvendo como que pequenos soldados, indiferenciados, marchando ordeiramente iguais a bonecos, não fosse esse receio um dos tópicos mais recorrentes da consciência contemporânea.

Para o retrato sempre violento dos homens e dos bichos, o pintor usa o desenho agressivo, fazendo a mescla entre o indivíduo mais aparentemente delicado, ou ingénuo, com o eminente perigo. Entre crianças, mulheres ou velhos, pode estar o espectro da morte, como podem estar leões ou baleias sobrevoando, sempre parecendo anunciar a desgraça dos incautos. É nessa perversão que reside o mais duro aspecto destas telas, como um inelutável destino que vemos quando prestes a ser cumprido. Somos obrigados a presenciar o momento em que a narrativa de uma vida se resolve, se define, adquire a sua singularidade máxima, que acaba por nos reconduzir a todos ao trágico do inesperado e da efemeridade. Nestas telas somos levados pela mão – porque profundamente seduzidos com o aspecto ao mesmo tempo fantasista e até de conto infantil – para enfrentarmos o perecível de todas as coisas, o perecível do homem. O homem, aqui, está como no seu circo máximo, o lugar onde filosofia alguma o acude de excepção e o assoma com desprezo aos animais para, com eles, medir as forças, assemelhar-se, diferenciar-se, morrer.

As histórias de Mário Vitória são das mais conseguidas da nossa pintura actual, inteligentemente recuperando a mestria do desenho e a pertinência dos temas. O que consegue é um resultado extremamente característico que, de entre tantas propostas, de tantos artistas, se destaca como uma assinatura muito única e tão, já, necessária. Tudo para garantir que a pintura ainda se faz de mestria e ímpeto inconformista.

Valter Hugo Mãe, março 2008