Mário Vitória e as potências do imaginar
Ao Artur Cruzeiro Seixas
Mário Vitória é um artista singular. Pertence a uma família rara, excêntrica e como tal pouco povoada, cujos membros só aparecem de vez em quando, e que persiste em trazer para a esfera da pintura e da arte sinais inesperados, directamente influenciados pelo campo do fantástico e da imaginação pura, sem todavia deixarem de beber no real a sua fonte mais decisiva.
Esta faculdade de imaginar a partir de algumas referências ao real, ou seja, de produzir alegorias fantasmagóricas de imenso impacte visual a partir deste, tem uma tradição profunda na arte do ocidente. Dos Bestiários medievais, que se fizeram tantas vezes em pedra e sobre os pontos mais altos das vetustas catedrais, até às enigmáticas figuras de alguma pintura flamenga, de Brueghel a Hyeronimus Bosch, das elucubrações simbolistas de um Felix Valloton a certas vertentes do Surrealismo, naquilo em que este tocou o coração do maravilhoso, esta tradição foi-se constituindo como uma necessidade. Necessidade de quê, perguntar-nos-emos? Necessidade de alegorizar o mundo através de comparações extraordinárias e bizarras, que excluam a simples coincidência e que, no seu lugar, instaurem um vasto campo de possibilidades incumpridas volvidas puras potências do imaginar.
Quer dizer, fabricações de mundos, mas seguindo a pura lógica do que poderiam ter sido em vez do que realmente foram. E o que os torna fulgurantes, exuberantes, sendo precisamente que se figurem como possibilidades por cumprir, mas sem perder aquele sentido lógico que a verdadeira imaginação coloca em tudo quanto produz, caminhando numa dimensão sempre intimamente paralela à do real.
As cores, as formas, as metamorfoses várias que se vão dando sucessiva e generosamente ao nosso olhar como espectáculos exuberantes, não são então mais do que registos de outras possibilidades que caminham a par do que foi ou é o real, e que o fantasmagorizam em visões, tal como os sonhos, mas que conservam, dele, a referência cifrada a um qualquer momento do seu acontecer.
Foi Freud quem, no seu tratado dedicado à Interpretação dos Sonhos escreveu que os mecanismos essenciais do sonho são o deslocamento e a condensação. Ou seja, o deslocamento do cenário de um dado acontecimento para um outro espaço, que evoca, ainda que paradoxalmente, um outro acontecimento. E a condensação de elementos díspares, provenientes de diversas ocorrências acontecidas, numa cena outra, lateral à primeira, que conjuga em um único plano sintético a multiplicidade vária de diversos acontecimentos separados.
Assim também ocorre nos processos oníricos que, progressivamente, se vão desenvolvendo no interior da pintura de Mário Vitória. Ora pela sugestão sedutora do sonho, ora pela imposição brutal das imagens do pesadelo. O facto é que, num como em outro caso, nela se deslocam os acontecimentos do seu cenário primordial e se geram depois, no interior do seu espaço assim reconstruído, muitos e novos cenários onde outras possibilidades de desenvolvimento vão tendo lugar, incorporando inesperadas alusões, evocações, memórias, sem perder jamais de vista as referencias respigadas no real.
O processo de fantasmagorização, a que já aludi para trás, torna-se deste modo numa espécie de necessidade interna própria, se é que não mesmo constitutiva e intrínseca, a esta pintura e às suas vicissitudes. Ele constitui-se, antes do mais, como método e como modelo de criação ao mesmo tempo que de transfiguração e de comunicação de uma imparável metamorfose das figuras e mesmo dos sentidos. E, através dele, torna-se possível acolher essas figuras no interior de um campo singular, em que assistimos a uma perpétua modificação, que as assola e nos perturba no mesmo gesto.
Ao mesmo tempo, através deste processo o que se nos comunica é precisamente a meditação do artista sobre a condição característica da instabilidade e da mutabilidade típicas do contemporâneo, nas suas incertezas e fragilidades. Por isso é que nos sentimos tentados em aproximá-lo da família de Bosch, na medida em que também este não procurava mais do que alegorizar o seu tempo.
Nisto se afasta claramente Vitória do que melhor caracteriza a imagerie surrealista, mesmo se por vezes converge, com aquela, nos sortilégios próprios do libertar de uma imaginação desenfreada.
Ao contrário daquela, o mundo de que nos reporta a pintura do artista é este, aquele mesmo em que vivemos, e não um outro que estaria, como no verso de Rimbaud, algures em outro continente do espírito. O mundo de Vitória é este, mesmo se não o reconhecemos de imediato, precisamente porque nos aparece transfigurado e metamorfoseado por imagens perturbadoras e carregadas de cifras e de pistas em si mesmas irreconhecíveis.
Nesse sentido, não deixa de ser interessante compreender o modo como ele se apropria de uma certa forma de imaginar o espaço que não pode deixar de evocar os espaços metafísicos de um Cruzeiro Seixas. Mas se o faz é sobretudo para deixar depois fluir neles relações de uma outra natureza. Ao contrário da dimensão onírico-metafísica do grande surrealista português, Mario Vitória surpreende antes paráfrases do mundo contemporâneo, que vai glosando como alegorista, ao mesmo tempo que recorre a referências à pintura ou à imagética das artes figurativas populares como a Banda Desenhada fantástica. Se depois se percebe em alguns trabalhos mais recentes uma homenagem ao outro artista, que sem complexos chega a citar, é antes porque em ambos a presença do desenho é estruturante, e porque por vezes Vitória se apropria, para melhor conduzir o roteiro por onde leva o seu cortejo de personagens, do modelo espacial do primeiro.
O desenho, no seu trabalho, tem de facto constituído mais do que um meio estruturante e indispensável aos seus processos construtivos: ele é de certa maneira, e a meu ver, a própria natureza de que nasce este trabalho que, se hoje se desenvolve livremente no campo da pintura, se lembra ainda da sua origem encontrada no domínio do desenho.
Virtuoso desenhador, capaz de dominar com à-vontade as grandes escalas, tanto como de deixar que a fluência do próprio desenhar vá encontrando as soluções plásticas mais livres do trabalho (a este titulo os seus desenhos de pequeno formato são deveras exemplares), Mário Vitória estabelece, nos grandes formatos desenhados tal como na pintura, processos de construção visual que se alimentam das soluções para que o conduz o desenho, encontrando aos poucos nestas o significado possível que depois o leva a procurar uma forma final mais precisa.
Mas a verdade é que, num caso ou no outro, é sempre o desenho que define a força estruturante de cada trabalho, do mesmo modo que é ele que define as relações espaciais, ou ainda que modela as figuras e que sugere as soluções plásticas que mais lhe interessam.
E o facto é que a imaginação própria do desenho é cruel, já que o desenho conduz com maior sentido narrativo do que a pintura, as suas figuras para becos do sentido em que este se rarefaz. O desenho tem uma forma de imaginar própria e singular, que tanto se dulcifica em sugestões de ternura como se abeira de uma analítica que conduz à desfiguração.
Não surpreende, assim, que Vitória possa conduzir as suas personagens para situações-limite próximas dos estados da catástrofe. Se elas nascem do desenho, é justo como tal que o seu destino seja conduzido pelos caprichos insondáveis que o movem…
Bernardo Pinto de Almeida, junho 2012