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Mar de medos

Iam, partiam e pariam (diziam-lhes)
Saíam da casca do ovo da modorra
Cogitando os fiapos do manto fofo do sonho
Alguns aos gritos por Deus e o Diabo
Olhos esbugalhados desciam às profundezas do mar salgado e a barra desaparecia
Calava-se o vigia na gávea, fugiam as gaivotas de regresso ao certo

As cascas de nozes com vozes dentro vogavam
O homem que instruía o do leme segurava os riscos das cartas de marear
Usava o compasso, calculava, aguardando o conselho do negrume
Onde poisavam fiadas tremeluzentes de lamparinas celestiais
As estrelas
Sonhava, desdenhava do medo, soluçava no pranto surdo dos heróis por revelar – a empresa de navegar e por El-rei cativar terras e homens e luares indizíveis

Misérias;

No brilho das águas, nos ladrilhos dançantes de vidro quebrado
Que o Sol e a Lua agitavam
Havia rostos rudes de fome que se miravam
Peixes por baixo e destroços
Um sopro de ventos alísios e o apelo dos trópicos, a secura
A promessa, talvez a fé debruada com superstições fecundas de outros medos, sal
Novos destroços de querelas, guerras por fronteiras
Eiras, cabeças de gado e posse de terras
Submissão a quanto obrigas –
Um homem foge da aldeia e do arado e pasma-se no espelho do oceano

Rugiam por baixo águas cortadas pelo gume da quilha
Espumavam ondas como colinas abruptas
Sem sossego dançavam e neles o medo aquecia o frio
Memórias à desfilada, o que ficava e o que não se conhecia
Figuras plantadas no olho interno da consciência, que o vinho aguado não sossegava
Exaltava, batia de lado a lado na tontaria
Que carregavam como fardo e única bagagem: medos
Da perdição que um cura solene lhes carregou à laia de guilhotina vingativa

Do fundo do manto, do fundo do desassossego
Olhos e mandíbulas atrozes aguardavam a fragilidade
As cartilagens por trucidar, um esgar, um vácuo que sorve
E se refastela, uma comezaina de deuses malvados
Que é a especialidade dos deuses espalhados pela tormenta

Mar salgado és português por pena e desterro
Lançámo-nos a medo para lá do medo que nos afugentava
Empurrados para as ondas, calças arregaçadas e braços nus manobram
Os remos da esperança, qual descoberta e abastança que nos espera
O paraíso na terra, mulheres e amores sublimes
De histórias que Homero legou como isco
É vê-los nas amuradas de bombordo a estibordo à toa no palavreado
O que ficou lá atrás e o mistério que vive escondido
O impulso de um capitão destemido ou fugido das leis do reino
Dos amores de um leito,
Seguiam contra o vento que lhes penteava as fraldas da cruz do crucificado
Olhos miravam o pasmo do ventre das nuvens que desabavam culpas de lágrimas de cinza caídas

Oh Mar Português sou teu freguês fintando a verdade
Sou a leviandade da aventura
O herói que persiste na formatura quando todos recuam
Apertado por sortilégios e pesadelos que o ouro e a trapaça disfarçam
Sou a conquista à toa que regressa a Lisboa e entoa os trinados
De um fado, seco tingir de cordas
Voz do esganiço da traição:
Mar que se vê e mar que se abarca em cada vaga, balança
Ali Castela como uma lança que nos obriga a sobrevivência
Será sempre assim entre nós na língua de terra que nos acolhe
O Sol e a sorte, o último desafio da existência
Mar adentro, mar eterno, mar de medo

Exorcizando perfis cerebrais
Mar (és) rio de vitória

António Manuel Ribeiro, março 2012