Eis o espelho, disse o mágico
Às vezes, precisamos de alguém que nos mostre os nossos próprios sonhos. Se o mundo burocrático não fosse tão inflexível, essa poderia ser uma profissão, com número de atividade nas finanças, código de algarismos para se preencher nos recibos verdes.
Quando tomados um a um, os elementos que compõem o vocabulário do trabalho de Mário Vitória são-nos totalmente familiares, reconhecemo-los das notícias, da publicidade, da natureza ou dos nossos pensamentos. Aquilo que faz uma grande diferença são as relações que esses elementos estabelecem entre si. Essa rede cria um discurso, uma composição.
Num certo sentido, aquilo que essas imagens dizem é menos objectivo do que estas palavras porque, no trabalho de Mário Vitória, trata-se de visível a falar de invisível. Enquanto que estas palavras já existem na abstração, não precisam de se transformar para chegar à dimensão em que existem, as imagens de Mário Vitória são concretas e, por isso, precisam de se relacionar umas com as outras, para criar abstração. São como ramos a esfregarem-se até fazer fogo. Esse “fogo” pode atear-se a partir da ironia, da hipérbole, do eufemismo ou de qualquer outra figura de estilo.
Estas relações são histórias, formam entrançados de histórias, podemos percorrê-los em qualquer direção, são uma espécie de romance infinito. Como num romance, há muitos espaços e há muitos tempos. No entanto, todos os espaços pertencem ao grande Espaço, ao mundo, existem caminhos a ligá-los; do mesmo modo, todos os tempos pertencem ao Tempo, grande e único. Tudo é aqui e agora.
Referindo histórias e romances, é forçoso referir personagens. Cada elemento utilizado tem a sua própria densidade, estabelece relações consigo próprio que podem passar pela distorção parcial, pela amputação ou pela metamorfose. A distância desse simbolismo é medida em profundidade, o peso desse simbolismo é medido em complexidade.
Os acontecimentos de cada imagem são de tal modo diversos que podem parecer-nos saturados. Esse é o resultado de estarmos, neste caso, a prestar atenção ativamente. Todos os dias, quase sem descanso, estamos expostos a uma quantidade ainda mais exagerada de estímulos: a televisão, a internet, qualquer avenida de qualquer cidade.
Como uma enorme família disfuncional, a população que habita o trabalho de Mário Vitória, são emigrantes dessas esferas da cultura de massas. Muitas vezes, estão fora do seu ambiente ou, ali, comportam-se de modo diferente do que costumamos vê-los, como se, por fim, mostrassem o seu rosto verdadeiro, a sua personalidade escondida.
O trabalho de Mário Vitória é político, questiona muito do que quase sempre se dá por adquirido. Ao fazê-lo, está firmemente assente na realidade, mesmo que triture essa realidade em pedacinhos, mesmo que a desarrume. É também essa a ação dos sonhos, dos nossos próprios sonhos. No entanto, obcecados, fato e gravata, burocratas inflexíveis, não reparamos convenientemente neles. É por isso que precisamos tanto de alguém que nos mostre os nossos próprios sonhos. É pena que essa atividade não seja devidamente reconhecida. Se esses profissionais viessem na lista telefónica, havíamos recorrer aos seus serviços com a mesma naturalidade com que, hoje, se encomenda uma pizza.
José Luís Peixoto, março 2016