Apocalipse NOW! Reflexões sobre a Pintura de Mário Vitória
A apresentação, na Galeria do 11, em Setúbal, de uma exposição de Pintura, Desenho, Escultura e Objetos de Mário Vitória, sob o muito sugestivo título de «Dois pássaros a voar e outras narrativas sobre a última bolacha no mundo», com confessada homenagem ao Poeta da Liberdade José Afonso e à biodiversidade que é apanágio da região, levou-me, depois de um longo encontro com o artista, no Porto, cidade onde reside, em cujo ateliê tive oportunidade de ver todas as obras «ao vivo», a escrever o presente texto de leitura crítica da sua obra e a dar-lhe um título que cita, com subtis diferenças de grafia e de significado, o do magnífico filme de Francis Ford Coppola, de 1979.
Fi-lo não porque as obras apresentadas tenham uma especial preocupação ilustrativa relativamente ao último Livro da Bíblia (uma outra obra de Vitória, um políptico verdadeiramente espetacular, que se não expõe nesta ocasião, tem, de facto, uma declarada intenção de «atualizar» o universo figurativo teleológico desse texto sagrado), ou porque pretendam citar o inolvidável filme americano sobre a Guerra do Vietname, por sua vez inspirado na sequência narrativa da novela Heart of Darkness (1899), de Joseph Conrad (1857-1924), que do livro bíblico retira apenas o crescendo de violência, à medida da metafórica quebra dos sete selos, até ao clímax final, mas porque toda a obra deste jovem pintor, de inesgotável e febril imaginação figurativa, a quem auguro um notável futuro, me lembrou o interessante livro do saudoso Umberto Eco (1932-2016), Apocalípticos e Integrados (1964), em que o famoso semiólogo aborda as duas posições antagónicas vigentes entre a intelectualidade dos anos sessenta relativamente à (então emergente) «cultura de massas» – a que a recusava, vendo nela a dissolução de uma tradição cultural, e a que a aceitava, vendo nela o início de um acesso alargado a bens culturais por um cada vez maior número de grupos sociais, não deixando de assinalar algumas posições de síntese entre ambos os posicionamentos. O tempo decorrido entretanto terá dado razão a estes últimos, como intuímos nas propostas artísticas de Mário Vitória.
Com efeito, a obra de Mário Vitória relaciona-se diretamente com a «cultura de massas» hoje vigente e com os poderes que dela se servem para manipular as consciências e governar o mundo, e retira desse gigantesco magma imagético que hoje quase nos submerge muitos ícones, situações e tendências noticiosas, bem como os instantâneos mediáticos ilustrativos, para os trabalhar criativamente e os devolver, recombinados, re-contextualizados, transfigurados, re-significados e, sobretudo, cruelmente denunciados numa visão grandiosa e telúrica que acaba por se tornar violentamente apocalíptica, mesmo no seu sentido mais literal, no que comporta de revelação de um mundo de horror que se rejeita! De facto, é toda a obra de Mário Vitória que grita com veemência: o que quer que seja que imaginemos ser o Apocalipse está a acontecer, aqui e agora, neste mundo em que a barbárie parece querer triunfar, a cavalo da tecnologia!
Essa visão épica e telúrica que a obra de Mário Vitória convoca faz, por seu turno, uso de muitas das metodologias e de muitos dos recursos figurativos e expressivos que a tradição artística do século XX legou à posteridade, pelo que a sua pintura é, também, uma espécie de meta-pintura ao interrogar, com profunda originalidade, as possibilidades atuais da própria Pintura, no seu campo expandido, ao propô-la como um palimpsesto de imagens e sobre imagens, quer da História, quer dos media, em encadeamentos narrativos violentos e difusos, por vezes de extensão e limites imprecisos, convocando os mais variados ícones mediáticos, assim como enquadramentos fotográficos de pseudo-instantâneos ou mesmo lembranças fugidias de eventos, de texturas e de emoções, de cenas televisivas, cinematográficas ou da BD ou, ainda, de jogos de computador e de apps.
A inesperada e inusitada narratologia da imagem que Mário Vitória nos propõe, manifeste-se ela em desenhos, em pinturas de pequeno, médio ou grande formato, em objetos escultóricos ou em «coisas» intervencionadas e ainda nos seus próprios textos, é servida por uma imaginação figurativa fulgurante que, sendo profundamente filha do seu tempo, marcado por verdadeiros vulcões mediáticos que estão a ponto de devorar o que serão os «salvados da Razão», exerce um trabalho de desconstrução tal sobre as teias e as malhas da alienação inerentes a esse universo imagético que logra devolver-nos as imagens opressivas com distanciamentos críticos, profundamente contemporâneos e não isentos de uma violência militante, que se recusam a aceitar o conformismo reinante perante a frieza insensível em face do sofrimento, da dor e da morte, a ignomínia, a destruição dos valores e a desumanidade cruelmente violentas do mundo de abundância material e de vazio espiritual, embora preenchido pela barbárie tecnológica, que é aquele que nos rodeia e paulatinamente vai triturando.
Há, nessa imaginação figurativa e na linguagem artística que a serve, muitas citações e referências às estratégias de questionamento conceptual e mesmo de enunciação de certas poéticas surrealistas, que serão porventura caras ao pintor e que motivaram apressadas catalogações críticas, que não subscrevemos, mas o que se deve relevar, nessa sua fantástica imaginação figurativa, na sua inesgotável criatividade e na estridência veemente das suas propostas plásticas, é a adoção de uma metodologia, essa sim de clara matriz surrealista, assente na livre associação de ideias, na exploração quase obsessiva do material onírico e na libertação face às convenções, reescrevendo os próprios processos.
Exemplo particularmente feliz dessa reescrita de processualidades reside na inversão, ao nível da factura dos seus quadros, da tradicional precedência do desenho face à mancha cromática e ao acabamento pictórico. É precisamente a mancha de cor que começa por definir os elementos figurais e a própria ordenação compositiva e, por inerência, a sequência narrativa, que o desenho completa em seguida. Daí as suas pinturas ostentarem um acabamento resolutamente desenhado, ao ponto de, por vezes, roçarem o monocromatismo, que foi, de resto, uma fase significativa do percurso recente do autor.
Para terminar, uma palavra de esperança que as pinturas e os desenhos, assim como as esculturas e pequenos objetos que Mário Vitória apresenta em Setúbal justificam plenamente! Quando observamos os quadros de Mário Vitória e neles descortinamos imagens mediáticas ou tecnológicas familiares que, pela irreverência do seu tratamento, nos chegam a assustar ou que nos deparamos com um boneco oco, igualmente muito (ou até terrificamente) familiar, que, de modo omnipresente, protagoniza ou assiste a várias cenas, irónicas e sarcásticas umas, aterradoras outras, somos eventualmente levados a pensar que o autor destas esfusiantes imagens olha para o mundo que nos rodeia de forma lúgubre e nos quer encerrar nessa visão desesperada, quando é precisamente o contrário aquilo que a atitude profundamente otimista do pintor pretende: tudo aquilo com o qual ele se não conforma é com a letargia anestesiada com que todos vamos assistindo, sem reagir, ao triunfo de uma «barbárie civilizacional» que se travestiu de tecnologia e nos vai subtilmente dominando! E, como toda a grande arte, ao longo dos tempos, o que a pintura de Mário Vitória pretende é tirar-nos dessa «zona de conforto», espicaçar-nos, incomodar-nos ao ponto de nos fazer ACORDAR, como pedia Carlos de Oliveira na primeira das Canções Heroicas que Lopes Graça musicou! Acordar-nos com as suas imagens estridentes, ferozes e descarnadas e com os seus gestos picturais violentos e desapiedados, perante a tirania e a barbárie triunfantes, que se materializam em atos e omissões individuais e coletivos que afetam inexoravelmente o curso do mundo em que vivemos e nos poderosos dispositivos mediáticos que os veiculam, mas que também nos cercam, sufocam e sobretudo condicionam e face aos quais é imperioso RESISTIR, usando, afinal, a mais singela e porventura a mais eficaz das armas de sempre – a Pintura!
Como pedia José Afonso, em vésperas da redentora madrugada de Abril: Venham mais Cinco!
Fernando António Baptista Pereira, agosto 2017