Sobre a obra de Mário Vitória
Não há cabeça explícita, isso significa que é a exposição da cabeça. Quando num quadro não há cabeça pintada e só há o que resta do corpo então podemos estar certos de que esse quadro só mostra a cabeça, só aponta para a cabeça, para o que não lá está, para o mistério, para aquilo que se escondeu, para o crime. Uma falta é sempre um crime, e é preciso por isso olhar para os quadros de Mário Vitória como indícios de crimes, de faltas, de catástrofes, de cores exuberantes que se exibem para distrair o olho do problema, daquilo que nos incomoda, da falta, do rapto.
Uma cabeça que falta porque foi raptada.
E podemos ver pés e não ver o resto, ver um sonho e não ver a realidade; estamos sempre assim. Em alguns quadros apenas vemos metade, e a metade que falta instala o olho-detective, o olho intrigado que quer encontrar a clareza. Mas não há clareza; há intriga, narrativa. Intriga intrigante; narrativa que quer ser esclarecida.
Noutros quadros, porém, quase o processo inverso: está lá tudo, mas são dois mundos; um, dois sobrepostos – e o que vemos é aquilo que se salvou de uma diluição entre dois mudos: nuns quadros, portanto, está metade, falta a outra. Noutros quadros está como que o dobro – dois ou mais mundos – e aí entramos no sonho, naquilo que exige análise, separação, corte.
Portanto, ou queremos descobrir onde está a parte que foi cortada, que não nos foi mostrada. Ou, pelo contrário, quereremos cortar, separar, analisar, tentar perceber os vários mundos, líquidos irmãos que se tornaram num único (porque o sonho é isso: várias substâncias de cores e formas distintas apresentam estranhamente uma unidade; como se tivessem nascido, já muito multiplicadas).
Bicicletas e asas; aparições, visitações, mão que pinta a mão que pinta, paisagens que não têm cores deste mundo e cores que parecem ocupar coisas que não são desta realidade. Como uma cabeça que tivesse entornado tintas internamente; por vezes isso; uma inundação.
Há ainda, homens que contam segredos a animais (como na obra pretérito perfeito), e no fundo é isto: o animalesco manda quase sempre, o animalesco domina a forma separada. Como se os animais e aquilo que é natural fossem o melhor dos confidentes; aqueles que podem receber o segredo: animais, árvores, montanhas, paisagens híbridas – eis a natureza como o ser que sabe escutar. Nestes quadros de Mário Vitória não há segredos entre humanos. Os humanos são demasiado óbvios e explícitos – como se não soubessem guardar segredos.
E daí, isto, o essencial: o homem tem algo a dizer ao ouvido da besta: somos como vocês, talvez seja este o sussurro essencial; somos como vocês, parecem dizer muitos dos quadros de Mário Vitória.
E muitas vezes, e acima de tudo, é isto que Mário Vitória faz: impossibilidades com cor ou, dizendo de outra maneira: ao impossível podemos dar cor – eis um dos sussurros que paira sobre esta exposição.
Gonçalo M. Tavares, abril 2017